quarta-feira, 29 de julho de 2009

Ser Princesa


"O que quer que aconteça", disse ela, "não pode mudar uma coisa. Se sou uma princesa em trapos e andrajos, posso ser uma princesa por dentro. Seria fácil ser princesa se eu estivesse vestida com tecido de fios de ouro, mas é um triunfo muito maior ser princesa o tempo todo, sem ninguém saber."

A Little Princess
Frances Hodgson Burnett

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O Canto do Galo

Por Rubem Alves

Era uma vez um granjeiro. Era um granjeiro incomum, intelectual e progressista.
Estudou administração, para que sua granja funcionasse cientificamente. Não satisfeito, fez um doutorado em criação de galinhas.
No curso de administração, aprendeu que, num negócio, o essencial é a produtividade. O improdutivo dá prejuízo; deve, portanto, ser eliminado.
Aplicado à criação de galinhas, esse princípio se traduz assim: galinha que não bota ovo não vale a ração que come. Não pode ocupar espaço no galinheiro. Deve, portanto, ser transformada em cubinhos de caldo de galinha.
Com o propósito de garantir a qualidade total de sua granja, o granjeiro estabeleceu um rigoroso sistema de controle da produtividade de suas galinhas. “Produtividade de galinhas” é um conceito matemático que se obtém dividindo-se o número de ovos botados pela unidade de tempo escolhida. Galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou superior a 250 ovos por ano podiam continuar a viver na granja como galinhas poedeiras. O granjeiro estabeleceu, inclusive, um sistema de “mérito galináceo”: as galinhas que botavam mais ovos recebiam mais ração. As galinhas que botavam menos ovos recebiam menos ração.
As galinhas cujo índice de produtividade fosse igual ou inferior a 249 ovos por ano não tinham mérito algum e eram transformadas em cubinhos de caldo de galinha.
Acontece que conviviam com as galinhas poedeiras, galináceos peculiares que se caracterizavam por um hábito curioso. A intervalos regulares e sem razão aparente, eles esticavam os pescoços, abriam os bicos e emitiam um ruído estridente e, ato contínuo, subiam nas costas das galinhas, seguravam-nas pelas cristas com o bico e obrigavam-nas a se agachar. Consultados os relatórios de produtividade, verificou o granjeiro que isso era tudo o que os galos – esse era o nome daquelas aves – faziam. Ovos, mesmo, nunca, jamais, em toda a história da granja, qualquer um deles botara. Lembrou-se o granjeiro, então, das lições que aprendera na escola, e ordenou que todos os galos fossem transformados em cubos de caldo de galinha.
As galinhas continuaram a botar ovos como sempre haviam botado: os números escritos nos relatórios não deixavam margens a dúvidas. Mas uma coisa estranha começou a acontecer. Antes, os ovos eram colocados em chocadeiras e, ao final de vinte e um dias, eles se quebravam e de dentro deles saíam pintinhos vivos. Agora, os ovos das mesmas galinhas, depois de vinte e um dias, não quebravam. Ficavam lá, inertes. Deles não saíam pintinhos. E, se ali continuassem por muito tempo, estouravam e de dentro deles o que saía era um cheiro de coisa podre. Coisa morta. Aí o granjeiro científico aprendeu duas coisas:
Primeiro: o que importa não é a quantidade dos ovos; o que importa é o que vai dentro deles. A forma dos ovos é enganosa. Muitos ovos lisinhos por fora são podres por dentro.
Segundo: há coisas de valor superior aos ovos, que não podem ser medidas por meio de números. Coisas sem as quais os ovos são coisas mortas”.
Esta parábola é sobre a universidade. As galinhas poedeiras são os docentes. Corrijo-me: docente, não. Porque docente quer dizer “aquele que ensina”. Mas o ensino é, precisamente, uma atividade que não pode ser traduzida em ovos; não pode ser expressa em termos numéricos. A designação correta é pesquisadores, isto é aqueles que produzem artigos e os publicam em revistas internacionais indexadas.
Artigos, como os ovos, podem ser contados e computados nas colunas certas dos relatórios.
As revistas internacionais são os ninhos acreditados. Não basta botar ovos. É preciso botá-los nos ninhos acreditados. São os ninhos internacionais, em língua estrangeira, que dão aos ovos sua dignidade e valor. A comunidade dos produtores de artigos científicos não fala português. Fala inglês.
Como resultado da pressão “publish or perish”, bote ovos ou sua cabeça será cortada, a docência termina por perder o sentido. Quem, numa universidade, só ensina, não vale nada. Os alunos passam a ser trambolhos para os pesquisadores: estes, em vez de se dedicarem à tarefa institucionalmente significativa de botar ovos, são obrigados pela presença de alunos a gastar seu tempo numa tarefa irrelevante: ensino não pode ser quantificado (quem disser que o ensino se mede pelo número de horas/aula é um idiota).
O que está em jogo é uma questão de valores, uma decisão sobre as prioridades que devem ordenar a vida universitária: se a primeira prioridade é desenvolver, nos jovens, a capacidade de pensar, ou se é produzir artigos para atender a exigência da comunidade científica internacional de “publish or perish”.
Eu acho que o objetivo das escolas e universidades é contribuir para o bem estar do povo. Por isso, sua tarefa mais importante é desenvolver, nos cidadãos, a capacidade de pensar. Porque é com o pensamento que se faz um povo. Mas isso não pode ser quantificado como se quantificam ovos botados. Sugiro que nossas universidades, ao avaliar a produtividade dos que trabalham nela, dêem mais atenção ao canto do galo…

ALVES, R. Entre a Ciência e a Sapiência. O Dilema da Educação. 6ªed. São Paulo: Ed. Loyola, 2001. p. 67-71.

Fotografia: Vagner Moura

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Dia da saudade

Por Nelly Carvalho

Foram criadas tantas comemorações, tantos dias e homenagens, só não foi criado até agora o "dia da saudade". Estamos devendo essa à nossa língua, pois só nela pode ser expresso este sentimento e, segundo Bastos Tigre, nas suas trovas, por "ela valeu a pena inventar-se o português".
Pode-se refutar o argumento dizendo que em outras línguas pode-se expressar o mesmo com outra forma como "I miss you", "tengo nostalgias de usted", "je languis de toi". Mas nenhuma tem o mesmo conteúdo semântico de tristeza e vontade de rever, resumido em uma única palavra que pode ser assim definida: "Saudade não é lembrança, nem mesmo recordação, saudade é a dor da ausência, maltratando o coração".
Também pode ser dito que o Dia de Finados já é uma data da saudade, mas nós não temos saudades apenas de quem partiu para sempre. Temos saudades até de nós mesmos, das faces que perdemos nos vários espelhos que refletiram nossa imagem e, às vezes, temos saudade e não sabemos nem de quê, como dizem os versos: "Eu hoje estou com saudade não sei ao certo de quê. de um dia de claridade, de um carinho de verdade, de ouvir a voz de você/ Eu sinto uma falta louca de um sonho bom que morreu, da alegria que foi pouca... de um olhar que não se vê... pois não há maior saudade que essa estranha ansiedade não sei ao certo de quê".
Fernando Pessoa tomou-a como mote constante, sentimento emblemático de seu povo: "Saudades, só portugueses/ Conseguem senti-las bem/ Porque têm essa palavra/Para dizer que as têm".
Porém, não são apenas os portugueses, e sim todos aqueles que usam a língua portuguesa, que com o termo exprimem o sofrido sentimento. A vida vai tecendo laços e tudo que tece são pedaços do vir-a-ser que se transforma em ser. Assim, a saudade aportou no Brasil com a colonização e, sendo o Recife um dos primeiros, senão o primeiro porto a ser tocado na rota, ela aqui aportou e fez sua morada em nosso Pernambuco.
Na nossa poesia, ela é dominante, ora representada pela "cotovia" em Bandeira, saudade da terra natal e da perdida alegria da infância, ora representada pela "noite de São João", junto com os entes queridos que estão "dormindo profundamente".
Olegário Mariano, ligando-a ao "amor" na encruzilhada do "Destino", diz que "ela veio ao mundo para ser boa e dar o seu sangue a quem a queira". Outros dizem ser "parte de nós que alguém leva, parte de alguém que nos fica". O sábio e saudoso Luiz Gonzaga avisava que a saudade é boa quando "a gente lembra só por lembrar, porém se vive a sonhar com alguém que se deseja rever, saudade aí é ruim", e eu digo isso por mim. É também, paradoxalmente, um dos temas recorrentes no tempo da folia, nas letras do frevo canção e de bloco - "a dor de uma saudade vive sempre no meu coração" -, a cantar as saudades do amor perdido ou da terra natal. Os versos emocionam lembrando que "a saudade é tão grande que até me embaraço ou ainda que é tão grande a saudade que até parece verdade que o tempo ainda pode voltar".
Grande ilusão! De etimologia incerta, as formas arcaicas primeiras foram "suidade, soedade e soidade", na fase do galego-português. Teria vindo assim de "soledade", solidão. Também foi levantada a hipótese de vir de "salutate", uma saudação bastante usada nas despedidas das cartas romanas. Até a influência de "saúde" já foi aventada. A dificuldade de explicar a mudança fonética fez João Ribeiro opinar que saudade tem origem no árabe "saudá", profunda tristeza. A outra hipótese (meio fantasiosa) é ter derivado de "Ceudda", forma bérbere de dizer Ceuta, fortaleza distante onde os soldados passavam longo tempo ausentes da terra natal.
O que fica, na verdade, é que com esta palavra, marca-se um estado de espírito que outras línguas não exprimem com precisão, sentimento muito próprio dos que usam o português como língua materna.
Porém, como diz o poeta, "uma coisa é cantá-la e outra coisa é senti-la". Bem que a saudade mereceria um dia para ser comemorada, entre nós, falantes do português, seus eternos cantores e cultores. Mas, enquanto esse dia improvável não vem, cada um escolha seu dia pessoal e intransferível, para comemorar todas as saudades que sentiu, sente e carrega consigo pela vida afora, seja ela longa ou ainda curta.


Imagem:

Menino com Pássaro, 1957
Cândido Portinari ( Brasil 1903-1962)
Óleo sobre tela, 65 x 53 cm

http://www.casadeportinari.com.br/princial.htm

http://www.portinari.org.br/

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Espaço


Por Daiane Braghin

Sobre minha cabeça, o teto.
Sob meus pés, concreto.
Ao redor, um mundo limitado. Sem frescor.
Onde aspirar oxigênio é respirar.
Onde olhar pela janela é contemplar paisagem.
O pior é me sentir completa com coisas assim.
O espaço físico limitado limita a liberdade, os sentidos e as capacidades dos seres.
Segurança que mata. Uma morte indolor. Incapaz de perceber o que é viver.
Nem portas e nem janelas.
Nem teto e nem chão.
Com cheiro de terra.
Com beijo do céu.
Com gosto de vida.
Sensibilidade que só vem à tona quando se contempla o variado, o natural, o solto... O ser!

Fotografia: Lu Peçanha

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