Por Nelly Carvalho
Foram criadas tantas comemorações, tantos dias e homenagens, só não foi criado até agora o "dia da saudade". Estamos devendo essa à nossa língua, pois só nela pode ser expresso este sentimento e, segundo Bastos Tigre, nas suas trovas, por "ela valeu a pena inventar-se o português".
Pode-se refutar o argumento dizendo que em outras línguas pode-se expressar o mesmo com outra forma como "I miss you", "tengo nostalgias de usted", "je languis de toi". Mas nenhuma tem o mesmo conteúdo semântico de tristeza e vontade de rever, resumido em uma única palavra que pode ser assim definida: "Saudade não é lembrança, nem mesmo recordação, saudade é a dor da ausência, maltratando o coração".
Também pode ser dito que o Dia de Finados já é uma data da saudade, mas nós não temos saudades apenas de quem partiu para sempre. Temos saudades até de nós mesmos, das faces que perdemos nos vários espelhos que refletiram nossa imagem e, às vezes, temos saudade e não sabemos nem de quê, como dizem os versos: "Eu hoje estou com saudade não sei ao certo de quê. de um dia de claridade, de um carinho de verdade, de ouvir a voz de você/ Eu sinto uma falta louca de um sonho bom que morreu, da alegria que foi pouca... de um olhar que não se vê... pois não há maior saudade que essa estranha ansiedade não sei ao certo de quê".
Fernando Pessoa tomou-a como mote constante, sentimento emblemático de seu povo: "Saudades, só portugueses/ Conseguem senti-las bem/ Porque têm essa palavra/Para dizer que as têm".
Porém, não são apenas os portugueses, e sim todos aqueles que usam a língua portuguesa, que com o termo exprimem o sofrido sentimento. A vida vai tecendo laços e tudo que tece são pedaços do vir-a-ser que se transforma em ser. Assim, a saudade aportou no Brasil com a colonização e, sendo o Recife um dos primeiros, senão o primeiro porto a ser tocado na rota, ela aqui aportou e fez sua morada em nosso Pernambuco.
Na nossa poesia, ela é dominante, ora representada pela "cotovia" em Bandeira, saudade da terra natal e da perdida alegria da infância, ora representada pela "noite de São João", junto com os entes queridos que estão "dormindo profundamente".
Olegário Mariano, ligando-a ao "amor" na encruzilhada do "Destino", diz que "ela veio ao mundo para ser boa e dar o seu sangue a quem a queira". Outros dizem ser "parte de nós que alguém leva, parte de alguém que nos fica". O sábio e saudoso Luiz Gonzaga avisava que a saudade é boa quando "a gente lembra só por lembrar, porém se vive a sonhar com alguém que se deseja rever, saudade aí é ruim", e eu digo isso por mim. É também, paradoxalmente, um dos temas recorrentes no tempo da folia, nas letras do frevo canção e de bloco - "a dor de uma saudade vive sempre no meu coração" -, a cantar as saudades do amor perdido ou da terra natal. Os versos emocionam lembrando que "a saudade é tão grande que até me embaraço ou ainda que é tão grande a saudade que até parece verdade que o tempo ainda pode voltar".
Grande ilusão! De etimologia incerta, as formas arcaicas primeiras foram "suidade, soedade e soidade", na fase do galego-português. Teria vindo assim de "soledade", solidão. Também foi levantada a hipótese de vir de "salutate", uma saudação bastante usada nas despedidas das cartas romanas. Até a influência de "saúde" já foi aventada. A dificuldade de explicar a mudança fonética fez João Ribeiro opinar que saudade tem origem no árabe "saudá", profunda tristeza. A outra hipótese (meio fantasiosa) é ter derivado de "Ceudda", forma bérbere de dizer Ceuta, fortaleza distante onde os soldados passavam longo tempo ausentes da terra natal.
O que fica, na verdade, é que com esta palavra, marca-se um estado de espírito que outras línguas não exprimem com precisão, sentimento muito próprio dos que usam o português como língua materna.
Porém, como diz o poeta, "uma coisa é cantá-la e outra coisa é senti-la". Bem que a saudade mereceria um dia para ser comemorada, entre nós, falantes do português, seus eternos cantores e cultores. Mas, enquanto esse dia improvável não vem, cada um escolha seu dia pessoal e intransferível, para comemorar todas as saudades que sentiu, sente e carrega consigo pela vida afora, seja ela longa ou ainda curta.
Imagem:
Menino com Pássaro, 1957
Cândido Portinari ( Brasil 1903-1962)
Óleo sobre tela, 65 x 53 cm
http://www.casadeportinari.com.br/princial.htm
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